O fio de Ariadne

O que mais querem levar de mim? Levaram minhas roupas, pulseiras e brincos, imprimidas nelas a vida em suas horas, lembranças do vivido, do eterno, o que se vive jamais se extingue, mas levaram. Por quê? Levaram mais do que isso, a avidez da aprendizagem, o sorriso e a calmaria, quem me via correndo daqui prácolá, jamais saberia que isso não era pressa, era vida, essência em movimento, e não tristeza de não se ter tempo, pois havia tempo para inúmeras pequenas coisas e para as grandes que não sabiam serem tantas. Meu fardo não era pesado, leve e em meu ossos pequenos enchidos por poucas carnes bamboleava a vida. Até ontem ainda cheia e farta, mas os que me levaram as coisas, não tem jeito, levaram. Substituí, alonguei-as, não eram iguais, parecidas, ou mais, ou menos importantes, mas foram substituídas, algumas olho com saudade e gostaria de tê-las novamente, outras não, já não fazem diferença. Os últimos anos encheram meus ossos de muita carne, inchadas de remédios, alteradas, boca de metal, alumínio e fezes que se perderam no caminho, purificação e um jeito de parar. Os olhos não obedecem o raciocínio, ficam ao largo das paredes e telas de inventores modernos. Engano o tempo, enganando a mim e não faço nada. Só engano o tempo. Converso com amigos, colegas, para alguma ajuda ainda sirvo, mas é pouco diante do planejado. Uma vida para viver e outra para contemplar. Não se sabe o que se quer, pede-se tanto a vida de céu, mas esta contemplação não é vida em si, é só uma pausa desnecessária ao prosseguimento, pois vida é o que se faz. é o que se produz, é o movimento vertiginoso de nossas camadas profundas, é a energia plasmada em ações que frutificam. Não, não nasci para o céu, nem para as viagens de folhinhas. Estas não me seduzem além de um segundo, as viagens precisam de imersão, de contato, de produção. Viagens estéreis são pura perda de tempo, embora eternos, o tempo me é precioso. Hoje não pude tê-lo comigo, fui enganada por ele e prostrada fiquei horas, esperando a energia salutar para produzir pensamentos, agilizar feitos. Um deus quer nos parar, quer que nos calemos e que não façamos mais nada, não sei por quanto tempo, mas há as pausas e aproveito-as, não da forma como gostaria, a letargia destes momentos corrói e deixa manchas de esgotamento que precisam ser removidas a contento e eu os farei. Deixarei meu campo limpo e sereno, organizado, ajustado. A pulseira que faltou, o brinco que se perdeu, as roupas subtraídas pelo tempo e pelos fatos serão repostas, numa ordem de invejar Ulisses. Aqui não jaz sementes infrutíferas, e sim, folículos pilosos que se multiplicarão nas corolas em sépalas e pétalas. Um vigor que virá e dará ao tempo o necessário para a organização. Ninguém leva o que não é seu. Hora do resgate, trazer de volta, iluminar, colorir. O corpo não é o mesmo, porém os anos acrescentaram a lucidez necessária para o refazimento. A César o que é de César, a mim, o que foi meu. Retomo assim o fio de Ariadne.

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